Roteiro do Queijo Tudo Redondo
Alfredo Durães
Lá vem o mineiro na estrada de terra com um queijo debaixo do braço. Aí aparece um carioca e...'. Nesse ponto, a velha piada tem inúmeras versões, quase sempre pejorativas aos mineiros, desde que contadas fora de Minas. E o carioca pode ser paulista, gaúcho etc. Aliás, não é mineiro, é mineirinho, assim no diminutivo, para dar mais ênfase ao caipira típico. Mesmo que alguns possam se incomodar com esse rótulo de jeca e seu indefectível queijinho - quase sempre debaixo do braço -, não se pode negar que o queijo está intimamente ligado ao jeito mineiro de ser, assim como o cigarro de palha está para o caipira. Importem-se ou não.
E as voltas que o mundo dá completaram mais um giro na quinta-feira passada. A vingança do jeca está consumada: o modo artesanal de fazer queijo de Minas agora é Patrimônio Cultural do Brasil, título concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E queijo artesanal, é claro, rima com caipira, que por sua vez rima com mineiro, isso no mais puro e bom sentido, sem complexos de inferioridade.
No rastro da concessão do título, o Turismo percorreu várias localidades da região do Serro, uma das mais emblemáticas quando o assunto é o laticínio,detentora da expressão famosa, "queijo do Serro". Famosa e apetitosa. Região da Estrada Real, com vários atrativos que andam de mãos dadas com um pedaço de queijo e um copo de café fumegante. Estivemos em Paulistas, pequeno município de seis mil habitantes, cercado de matas e também grande produtor de queijo artesanal. Passamos por Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras, cidades com grande apelo turístico e onde se pode comprar o mais legítimo queijo mineiro.
O título do Iphan chega para coroar uma tradição que vem de Portugal e tem mais de 300 anos de história. Queiram ou não, quando se fala em queijo artesanal de qualidade, o carimbo da embalagem é Minas Gerais.
Queijo Turístico: Em 300 anos, pouco foi mudado no processo de fabricação do famoso laticínio de Minas
Alfredo Durães
Antes, coisa de 100 anos, era o coitado do tatu que sofria. Do estranho animal era extraído o bucho, usado como coagulante no processo de fabricação do queijo da região serrana. Depois, com a debandada de tatus, o bucho do boi é que foi eleito. Hoje se usa um coagulante industrial. Antes, era a forma de madeira, depois a de alumínio e hoje se usa de PVC para acondicionar o produto na fabricação. Se bem que a tal forma de madeira ainda é vista com frequência e, dependendo do ponto de vista, empresta um charme a mais. Até pouco tempo se usava sal fino e, agora, o grosso faz as vezes.
Fora isso, os mais de 300 anos de história do queijo em Minas têm poucas mudanças, como atesta o presidente da Associação dos Produtores de Queijo do Serro, Jorge Simões. A associação, que tem 950 filiados, abrange 10 municípios: Paulistas, Alvorada de Minas, Dom Joaquim, Conceição do Mato Dentro, Sabinópolis, Materlândia, Rio Vermelho, Serr,a Azul de Minas, Santo António do Itambé e, obviamente, Serro. A cidade de Coluna é forte candidata a entrar para a associação, já que também é famosa produtora de queijo. "Estamos de braços abertos para os irmãos", diz Jorge, acrescentando que o turismo também deve se fortalecer na região com a exposição maior do produto.
O queijo mineiro já vinha forte na mídia, desde agosto de 2002, quando ganhou o título de patrimônio estadual. O título nacional "faz com que novos olhos se voltem para nós", acredita o presidente da associação. "Penso que agora a região vai se fortificar na produção e se integrar num processo de fabricação mais próximo do ideal”, conjectura. Ideal, explica-se, é que todos os fabricantes do queijo artesanal sigam as normas do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Uma tarefa hercúlea, já que pouco menos de 30, dos 950 produtores associados, têm certificação do instituto. Normas que, grosso modo, significam colocar pisos ideais nos currais, técnicas de desinfetar até mesmo as tetas das vacas no ato da ordenha e criar queijarias sépticas. Um investimento de cerca de R$ 30 mil para um produtor de médio porte. As normas exigem também que o leite seja certificado e o gado examinado periodicamente para detectar doenças.
O turista que for à região do Serro terá o queijo como algo a mais. Afinal, as construções históricas, a gastronomia típica da comida mineira, as festas e as sensacionais belezas naturais se juntam num quadro animador e convidativo.
Por Dentro da Queijaria
Visitante pode ir aos locais de fabricação e também aproveitar para ver construções barrocas e a beleza natural da região, que inclui suas vilas cravadas nas montanhas.
E"Apenas queijeiro", diz a placa na porta da queijaria da fazenda Engenho de Serra, a 15 quilómetros da cidade do Serro. Ela alerta para o fato de que somente o profissional pode entrar no recinto, uma medida sanitária. Lá dentro, Francisco Pereira de Jesus, de 36 anos, figura que está no ofício desde os 12 anos, mostra como se faz um autêntico Serro, produto que leva, em média, sete dias para ficar pronto.
A fazenda, aberta a visitantes, é um passeio que vale a pena, num cenário carregado do mais puro clima rural. À frente da casa grande, um lago. Em todo lugar, se espalham gansos, patos e galinhas, além de cães e gatos que convivem na maior das harmonias. O grande número de gatos se explica pela histórica luta com os ratos, bichos que não chegam nem perto de onde se produz um grande queijo. A fazenda consegue ser bem harmônica e tudo parece estar no devido lugar, com plantas por toda a parte.
A fazenda, pertencente a Jorge Brandão Simões, está na família há três gerações e tem um antigo paiol que foi transformado em ponto de encontro para reuniões de amigos, regadas a tira-gostos e bebidas, aquela coisa de dedo-de-prosa, bem típica do mineirismo.
Também um espaço chamado Salão do Queijo, um pequeno e interessante museu, onde o visitante se depara com cangalhas, caixotes para transporte no lombo de burro, queijeiras, ferramentas antigas e muita coisa ligada ao universo da iguaria. A queijeira, feita de jacarandá, é da década de 1930. As excursões para conhecer a Engenho da Serra podem ser contratadas no Serro e incluem um tour guiado pela fazenda, almoço com comida mineira e degustação de queijo e cachaça. Queijo do Serro, é claro. E custa a partir de R$ 45 por pessoa.
OUTRAS FAZENDAS Também na zona rural do Serro, o produtor José Célio Clementino labuta na produção, há 53 anos. "Estou com 63 de idade, daí dá pra você fazer o cálculo de quantos anos estou no ramo. Que veio de meu pai, que por sua vez aprendeu com meu avô. É uma tradição de família", diz, enquanto pega um queijo curado em cima da geladeira. Aliás, queijo curado é mercadoria difícil de achar no Serro, principalmente para os turistas. Ele produz uma média de 45 queijos por dia, vendidos na cooperativa por R$ 7,50 o quilo e que chega nas prate¬leiras para o consumidor com preços, em média, de R$ 12 o quilo.
A cooperativa do Serro recebe cerca de 40 toneladas de queijo por mês, vindas dos 950 produtores. Há produtores que fazem uma média de dois queijos por dia e outros que fazem até 150, como informa o técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Esta-do de Minas Gerais (Emater) Moisés António Barbosa, integrante da equipe de apoio ao queijo artesanal.
Raul Júnior, 67 anos, da fazenda Retiro do Cocho, também trabalha desde criança com fabricação de queijo. "Quando a gente era pequeno e começava a aprender, ficávamos cheios de orgulho na hora de experimentar. Era aquela coisa de falar, fui eu que fiz." Sua produção é de 60 a 70 queijos por dia e ele explica que uma peça é feita a partir de todo o leite tirado de uma vaca por dia. "Para ter uma produção de 70 litros por dia é preciso ter 70 vacas", resume. Tanto Célio quanto Raul acreditam que o título do Iphan só terá a acrescentar à região e ao turismo. Mas ambos, como todo bom produtor agropecuário, reclamam do baixo preço do produto no mercado.
O Milho e a Pedra
Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras são dois pequenos distritos do Serro. Duas jóias da coroa do turismo regional, a 26 e 32 quilômetros de distância da sede, por estrada de terra, atualmente em boas condições de rodagem. Não que tenham se tornado destinos sofisticados, mas deixaram de lugarejos rudes de alguns anos, que deixaram saudades naqueles turistas mais descolados, aqueles tipos que adoram uma falta de energia elétrica.
As duas, que surgiram no começo do século 18, oferecem agora mais opções de hospedagem, algumas sofisticadas e charmosas como a Pousada do Capão em São Gonçalo. A vida cultural foi outra que ganhou impulso, como os inúmeros artistas e shows que chegaram para ficar. Apesar do "progresso", elas continuam permitindo que o visitante comungue com a natureza. São cachoeiras de águas geladas, facilmente acessíveis por pequenas trilhas, e o visual incrível das montanhas que vão mudando de cor de acordo com a hora do dia.
Em Milho Verde, a imagem da igrejinha de Nossa Senhora do Rosário com seus dois coqueiros de lado e o mar de montanhas ao fundo é seu cartão-postal. Aliás, um dos cartões-postais de Minas Gerais. Já a bica das lavadeiras, no meio da cidade, é uma síntese de um lugar que insiste em ser pequeno na essência.
Em São Goncalo, não deixe de ver as cachoeiras e, em frente à igreja matriz da cidade, o restaurante e bar do Ademil, uma espécie de ponto de informação turística entre cervejas e petiscos. É ali que você pode comprar o vinho moscatel feito pela família com uvas plantadas na região. Uma tradição de mais de 60 anos que resulta numa bebida muito saborosa.